Cortázar & Jazz


"... e assim vai o mundo e o jazz é como um pássaro que migra ou emigra, que imigra ou transmigra, saltador de barreiras, contrabandista, algo que corre, que se difunde, e esta noite, em Viena, está cantando Ella Fitzgerald, enquanto, em Paris, Kenny Clarke inaugura uma cave e, em Perpignan, os dedos de Oscar Peterson brincam, e Satchmo, por todos os lugares, com o dom da ubiquidade que o Senhor lhe deu, em Birmingham, em Varsóvia, em Milão, o pão e o sal, algo de absolutamente indiferente aos ritos nacionais, às tradições invioláveis, ao idioma e ao folclore: uma nuvem sem fronteiras, um espião do ar e da água, uma forma arquetípica, algo de antigamente, de baixo, que reconcilia mexicanos com noruegueses e russos com espanhóis, que os reincorpora ao obscuro fogo central já esquecido, que os devolve mal e precariamente a uma origem atraiçoada, indicando-lhes que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram não era o único e não era o melhor, ou que talvez houvesse outros caminhos e que aquele que escolheram era o melhor, porém que talvez houvesse outros caminhos doces de caminhar e que eles não os tinha escolhido, ou que os tinham escolhido pela metade, e que um homem é sempre mais do que um homem e sempre menos do que um homem, mais do que um homem por encerrar em si aquilo que o jazz faz sentir e até antecipa, e menos do que um homem em virtude de ter feito dessa liberdade um jogo estético ou moral, um tabuleiro de xadrez onde se reserva ser o bispo ou o cavalo, uma definição de liberdade que se ensina as escolas, precisamente nas escolas onde nunca se ensinou e nunca se ensinará às crianças o primeiro compasso de um ragtimne e a primeira frase de um blues, etcétera, etcétera.”

I could sit right here and drink and think a thousand miles away,
I could sit right here and drink and think a thousand miles away,
Since I had the blues this bad, I can´t remember the day…

(p.64 - O Jogo da Amarelinha - Julio Cortázar)

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